quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Semear,preservar e voar...

Existem certas coisas que deveriam nos surpreender, mas já não conseguem o fazer. A proximidade e a freqüência acabam por transformar aquilo que realmente é sensacional em algo trivial, e passamos a não dar a menor importância.

Voar é sensacional

Voar, por exemplo. Desde Santos Dumont, ou antes, muito antes, desde Ícaro, voar é sensacional, espetacular. Entretanto, raramente nos damos conta do que significa nos elevarmos a dez, doze mil metros de altura, a 900 Km por hora, atravessarmos o mesmo oceano que a humanidade levou milênios a atraver-se a enfrentar com suas caravelas e amanhecermos, por exemplo, em Paris. Há quem reclame, inclusive, do desconforto e da demora. Dez horas da América do Sul à Europa!

Acidente da Air France

Lógico, um acidente trágico como o da Air France nos devolve à humildade e nos faz refletir à respeito da dimensão desta aventura alada trans-oceânica. Mas são três milhões de decolagens diárias ao redor do mundo e essa freqüência avassaladora é capaz de obscurecer os aspectos sensacionais do vôo humano.

Ações fantásticas

Da mesma maneira, outras tantas ações absolutamente fantásticas nos passam despercebidas. Com o ato de plantar ocorre esse fenômeno. É difícil perceber, até porque se trata de uma atividade milenar da nossa espécie, o quanto foi necessário de atrevimento para se praticar a agricultura. Característicamente humana, a ação de “descartar” o próprio alimento, enterrando-o, deixando-o à sorte dos elementos e intempéries é, sem sombra de dúvida, um ato de extrema ousadia e coragem.

Primeiro plantio

Dá até para imaginar que o primeiro plantio, a primeira semeadura humana, tenha sido na verdade uma tentativa de se esconder ou armazenar alimento que, para surpresa do homem primitivo, acabou germinando e gerando a primeira safra agrícola da história , ou melhor, da pré-história. Mas transformar este provável incidente em uma estratégia de sobrevivência tão bem sucedida, capaz de alimentar a fabulosa multiplicação de nossa espécie até aos bilhões, é mais sensacional do que dormir numa poltrona de um avião em São Paulo e acordar em Paris.

Trocando o certo pelo duvidoso

Plantar, semear o trigo, o feijão e o milho é atirar ao solo o próprio sustento. É, literalmente, trocar o certo pelo duvidoso. Trata-se de uma impressionante sofisticação do instinto de sobrevivência porque incorpora o planejamento estratégico ao mais elementar ato de alimentar-se e preservar-se.

Preservar é paradoxal

Preservar o meio-ambiente é mais ou menos como praticar a agricultura. Há também algo de paradoxal pois nossos mais ancestrais instintos nos inspiram a explorar os recursos naturais a fim de contemplarmos nossas necessidades. Essa é a lógica da relação humana com o meio-ambiente. Agora, quando se sugere que esta nossa relação imemorial seja substituída por outra, sustentável, é bem razoável que haja alguma dificuldade em sua implementação.

Bilhões

No caso da agricultura, não houvesse o homem primitivo incorporado tal prática como estratégia para aumentar a oferta alimentar, certamente a preservação da espécie humana não teria sido tão bem sucedida: afinal, somos praticamente sete bilhões. De maneira similar, quando se propõe alternativas sustentáveis para a produção e para a exploração de recursos naturais, estamos sendo tão ousados quanto o homem pré-histórico que, rompendo com os instintos primitivos, lançou ao solo seu próprio alimento certo de que aquele aparente ato insano geraria recompensas no futuro.

Práticas preservacionistas

Ao implementarmos as práticas preservacionistas hoje estamos contando com reflexos compensatórios no futuro, abrindo mão dos benefícios imediatos da simples exploração. A estratégia, neste caso, consiste em prever que a implementação de práticas sustentáveis ampliará a capacidade de suporte de nosso planeta tal qual a agricultura já faz há tanto tempo.

Com muita imaginação

Com um pouco de imaginação, é possível estimar a dificuldade de Santos Dumont em convencer a quem quer que fosse de que poderia construir uma máquina capaz de voar e, pelo contrário, hoje a aviação faz parte de nosso cotidiano.Também conseguimos imaginar o quanto deve ter sido difícil ao homem primitivo convencer seus pares a enterrar parte de seu estoque de alimentos, esperando por uma colheita futura. Entretanto, não há nada mais trivial hoje do que lançar uma semente ao solo, adubá-la e esperar pela produção.

Preservação ambiental

Assim se dará com a preservação ambiental. Princípios atualmente fortemente contestados, porque incompreendidos, deverão ser incorporados à nossa cultura quando se mostrarem capazes de promover benefícios mensuráveis. Assim, cedo ou tarde, as estratégias de preservação ambiental tão debatidas deixarão de nos surpreender e preservar será algo absolutamente trivial, tão ou mais trivial do que semear ou, até mesmo, do que voar por aí...

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