quarta-feira, 15 de julho de 2009

Semear, preservar e voar...

Existem certas coisas que deveriam nos surpreender, mas já não conseguem o fazer. A proximidade e a freqüência acabam por transformar aquilo que realmente é sensacional em algo trivial e passamos a não dar a menor importância. Voar por exemplo. Desde Santos Dumont, ou muito antes, desde Ícaro, voar é espetacular. Entretanto, raramente nos damos conta do que significa nos elevarmos a dez mil metros de altura, a 900 Km por hora, atravessarmos um oceano e amanhecermos, por exemplo, em Paris. Lógico, um acidente trágico como o da Air France nos devolve à humildade e nos faz refletir a respeito da dimensão desta aventura alada trans-oceânica. Mas são três milhões de decolagens diárias ao redor do mundo e essa freqüência é capaz de obscurecer os aspectos sensacionais do vôo humano.

Da mesma maneira, outras tantas ações absolutamente fantásticas nos passam despercebidas. Com o ato de plantar ocorre esse fenômeno. É difícil perceber o quanto foi necessário de atrevimento para se praticar a agricultura. Característicamente humana, a ação de “descartar” o próprio alimento, enterrando-o, deixando-o à sorte é, sem sombra de dúvida, um ato de extrema ousadia e coragem. Dá até para imaginar que o primeiro plantio tenha sido uma tentativa de se esconder ou armazenar alimento que, para surpresa do homem primitivo, acabou germinando e gerando a primeira safra agrícola da história, ou melhor, da pré-história. Mas transformar este provável incidente em uma estratégia de sobrevivência tão bem sucedida, capaz de alimentar a fabulosa multiplicação de nossa espécie até aos bilhões, é mais sensacional do que dormir numa poltrona de um avião em São Paulo e acordar em Paris. Plantar, semear é atirar ao solo o próprio sustento. Trata-se de uma impressionante sofisticação do instinto de sobrevivência porque incorpora o planejamento estratégico ao mais elementar ato de alimentar-se e preservar-se.

Preservar o meio-ambiente é mais ou menos como praticar a agricultura. Nossos mais ancestrais instintos nos inspiram a explorar os recursos naturais a fim de contemplarmos nossas necessidades. Agora, quando se sugere que esta nossa relação seja substituída por outra, sustentável, é bem razoável que haja dificuldade em sua implementação. No caso da agricultura, não houvesse o homem primitivo incorporado tal prática como estratégia, certamente a preservação da espécie humana não teria sido tão bem sucedida. De maneira similar, quando se propõe alternativas sustentáveis para a produção e a exploração de recursos naturais, estamos sendo tão ousados quanto o homem pré-histórico. Ao implementarmos as práticas preservacionistas também contamos com reflexos compensatórios no futuro, abrindo mão dos benefícios imediatos da simples exploração.

Com um pouco de imaginação, é possível estimar a dificuldade de Santos Dumont em convencer a quem quer que fosse de que poderia construir uma máquina capaz de voar. Igualmente, deve ter sido dificílimo ao homem primitivo convencer seus pares a enterrar parte de seu alimento, esperando por uma colheita futura e, entretanto, hoje é trivial. Assim se dará com a preservação ambiental. Princípios atualmente contestados, porque incompreendidos, deverão ser incorporados à nossa cultura quando se mostrarem capazes de promover benefícios mensuráveis. Assim, cedo ou tarde, as estratégias de preservação ambiental tão debatidas deixarão de nos surpreender e preservar será algo absolutamente trivial, tão ou mais trivial do que semear ou, até mesmo, do que voar por aí...

Um comentário:

  1. Parabéns pelo belo texto. De fato, a sustentabilidade é um grande passo para a humanidade, como foi o passo dado por Santos Dumont. O problema da sustentabilidade, penso, que esteja na falta de equilíbrio dos interessados no processo. É preciso que todos as partes conciliam suas vontades.

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